A internet ofereceu às pessoas a promessa de conhecimento ilimitado e de uma capacidade de comunicação jamais imaginada. E, ao lado dessas possibilidades, nos entregou as redes sociais: um espaço privilegiado de interação, sim, mas que carrega uma lógica específica, que potencializa questões que são próprias do ser humano.
Expomos na rede a nossa intimidade. E recebemos de volta a intimidade exposta pelo outro. Mas de que intimidade estamos falando? Na rapidez das trocas, somos impelidos a permanecer em contato apenas com o que é imediato – e condicionados por algoritmos a ver apenas aquilo que já conhecemos e conosco se parece.
É uma combinação perigosa. A busca por uma autoafirmação constante e muitas vezes cega deixa pouco espaço para as nuances que acabam atropeladas pela dinâmica vertiginosa da arena virtual. E, sem o contraditório, o reforço incessante de uma mesma ideia pode levar ao obscurantismo, ao ódio, à intolerância. É desse risco – e da importância do espaço para reflexões que nos ajudem a compreender nós mesmos e aos outros de forma mais profunda e nuançada – que fala o programa do recital.
O Dueto nº 3 de Beethoven é símbolo de um mundo analógico, o do século XIX, marcado pelo ato de contemplar a natureza e perder-se de forma livre e desapressada nesse contato. A paisagem quase idílica, no entanto, aos poucos começa a se transformar. As Interferências de Guilherme Bauer nos apresentam os primeiros ruídos externos e, então, Jennifer Higdon nos invade com a raiva, o ódio e o terror do retrato que faz da violência que nasce da intolerância com relação à diferença.
O Estudo Aberto de Henrique de Curitiba devolve ao programa o valor do diálogo – e mostra como ele pode ser multifacetado. Não se trata apenas de observar a conexão entre o som de cada um dos instrumentos, mas de se dar conta de como ela muda à medida que os músicos traçam seu caminho ao andar pela sala.
As valsas são um gênero conhecido dentro da história da música, associadas à Viena do século XIX. Mas nada é imutável, e elas foram sendo recriadas de acordo com a sensibilidade de épocas diferentes – e da subjetividade de quem as cria. Foi o caso de Francisco Mignone, ao buscar dentro da valsa uma atmosfera brasileira, quase seresteira, em consonância com o modo como entendia a cultura nacional.
Marisa Rezende, por sua vez, cria, logo no início de suas Variações, uma melodia que, em suas palavras, “bem poderia ser uma valsinha”. Mas ela vai sendo transformada, fragmentada, distorcida – uma maneira, ela explica, de retratar a inquietação de nosso tempo, que nasce justamente do modo como percebemos o mundo.
Uma percepção que é feita de fragmentos que, à medida que são colocados lado a lado, formam um mosaico que, em sua multiplicidade, nos levam a um retrato mais rico do que observamos – ou ouvimos, no caso das Gradações, de Guilherme Bauer.
Para tanto, é preciso ter disposição para ir além do que é imediato – e também tempo e espaço para percorrer esse caminho, ideia que está na base da inspiração que levou Ian Deterling a criar seu Dueto. E que se revela também na combinação de vozes do Trio de Charles Koechlin, imbuída do espírito humanista de um compositor que ao longo da vida defendeu a busca da liberdade e da independência, para si e para todos.
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