Um mar de gente, uma coisa “como nunca se viu”. Rostos emocionados de várias gerações, de quem cresceu em ditadura, de quem nasceu em liberdade. As músicas foram todas entoadas. E Depois do Adeus, de Paulo de Carvalho, Grândola Vila Morena, de Zeca Afonso, Somos livres, de Ermelinda Duarte. As Cantadeiras da Essência Alentejana, vestidas a rigor, dão o tom. Espontaneamente, um coro de vozes segue-as: “Somos livres, somos livres. Não voltaremos atrás.”
São milhares e milhares de pessoas que percorrem a Avenida da Liberdade, em Lisboa. Tão diferentes como iguais. Mães, pais, filhos e filhas, namoradas e namorados, famílias inteiras. Seguem de mãos dadas. Há crianças às cavalitas que gritam “25 de Abril sempre! Fascismo nunca mais!” Grupos de amigos que empunham cartazes com palavras de ordem. “A paz, o pão, habitação, saúde, educação.”
Erica Porru, de 53 anos, distribui cravos pelas crianças para que, de alguma forma, não se esqueçam do que representa este dia. “Os meus filhos nunca falharam um desfile.” É uma força que a comove, como a muitos dos milhares que ali estão ao seu lado.” “Esta força… é preciso não dar como garantido a liberdade e os direitos que temos.”
Foi isso que trouxe Filipa Pereira, de 40 anos, de propósito do Porto com o marido e os três filhos. Já ali tinham estado na barriga da mãe e ainda bebés. Voltaram porque é preciso mostrar-lhes “o quanto a liberdade é importante”. “Essa ideia de que temos de lutar pelas coisas”, diz Filipa.
Manuel Fernando e Maria do Carmo são “do tempo em que não se podia comemorar nada”. Conheceram-se e casaram em ditadura. Manuel, de 83 anos, esteve nas lutas académicas da década de 60. Maria do Carmo, de 78, tornou-se educadora de infância numa escola dedicada à “educação para meninas”. O casamento foi a porta para a sua liberdade, depois do domínio de pais “conservadores”. Até que chegou o dia “inicial, inteiro e limpo”. Maria do Carmo queria ir para a rua, mas tinha ao seu cuidado uma filha com quatro meses. No dia seguinte foi ver a libertação dos presos políticos, alguns seus amigos. Hoje, não faltam a um desfile. “A democracia não está consolidada. Temos de trabalhar para que isto não volte para trás”, diz Maria do Carmo.
Beatriz Lopes, de 23 anos, “mulher, jovem, preta”, como se descreve, vem à procura de voz, de representação, de respeito, de oportunidades para escapar a um futuro precário como o da família, vinda de Cabo Verde nos anos 90. “Estar aqui na rua, como pessoas periféricas, dos bairros, importa, visto que não temos representação nenhuma. Nasci cá, sou portuguesa, mas continuam a tratar-me como se tivesse chegado na semana passada.”
Um mar de cravos vermelhos ondula na avenida, de olhos postos no amanhã. “Procuro Abril no meu futuro”, alguém escreveu num cartaz. Partilham o comum sentimento de que “a democracia não é um dado adquirido”. E que por isso “não basta celebrar, é preciso cuidar”. Meio século depois do dia em que a porta da democracia se abriu, o povo saiu à rua. Ainda há “muitos, muitos mil para continuar Abril”.
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